Oito séculos de tradição vos contemplam
Dezembro, 1223, Greccio – O frade católico Francisco de Assis, após retornar de viagem à Terra Santa, faz uma parada na cidade italiana medieval. Ele convida homens e mulheres após a jornada de trabalho para celebrarem nascimento de Jesus. O espaço não era grande – uma manjedoura com feno, um boi e um burro que ali já estavam. Na missa celebrada, Francisco reforça suas mensagens de fraternidade, amizade, humildade e desejos de paz.
Dezembro, 2023, Milão – Enquanto turistas ficam deslumbrados com roupas, móveis e, claro, com a culinária e o bom café, muitos italianos percorrem basílicas e igrejas em um percurso concebido pela Assembléia Sinodal do Reitor do Centro Histórico de Milão para celebrar os oito séculos do início do presépio.
Então, aceitei o desafio e durante vários dias, visitei dez dos 15 presépios. Confesso que alguns fatores atrapalharam meu planejamento. As igrejas fecham em média durante três horas para o almoço – na Basílica San Vittore al Corpo, fui ‘educadamente’ convidada a sair – consegui tirar a foto a tempo antes do funcionário chinês apagar as luzes! Já no Santuário Santa Maria presso San Celso, o padre sorridente me acompanhou com a chave na mão até a saída pois já eram 18 horas. Em outras ocasiões, simplesmente me perdia ao tentar entender a guia portuguesa do Google Maps – vamos combinar, dizer siga à noroeste e vire ao sul, não ajuda muito…
Por outro lado, aproveitei esse tempo de intervalo das igrejas para conhecer museus como o de Ciência e Tecnologia Leonardo da Vinci, a Biblioteca Ambrosiana e o Museu Diocesano Carlo Maria Martini. Afinal, ‘turistar’ revigora a alma, faz bem para o corpo (caminhar é o melhor jeito de conhecer um lugar) e se você mantém o olhar atento, vê diferentes cenas. Pode admirar-se com restaurantes e lojas suntuosas do bairro de Brera, onde está o Arco da Paz na Porta Sempione, uma das portas históricas da cidade. E, se andar um quilômetro perto de uma das estações dessa grande malha de metrô, verá pessoas morando em barracas e enfrentando o frio de cinco graus ou menos, quando o sol desaparece por volta de 17h00, nos dias de inverno.
No meio do caminho, estava a Parohia Ortodoxă Română, ou igreja ortodoxa romena. Sem presépio e com imensa beleza com santos retratados em madeira e emoldurados com ouro. Com meu parco italiano, consegui conversar com o casal que ali trabalhava. Ao comentar que era brasileira e morava em Portugal, o homem respondeu:
– Ah, os brasileiros são muito bons. Estão sempre de bom humor. Nunca de cabeça para baixo!
Os presépios representam uma viagem no tempo nessa cidade que tem recebido muitos imigrantes do leste europeu e da Ásia – especialmente chineses – tanto que existe o bairro Chinatown! No Affari Centro, bairro onde estive por três semanas na casa de minha sobrinha Paola, é comum você ver placas em chinês e em italiano em vários estabelecimentos. No metrô, em diferentes horários, é mais comum ver chineses e outros imigrantes do que italianos. É a Europa mudando suas diferentes etnias, gradativamente… Um caminho sem volta. Mas enquanto isso, voltemos ao presépio que começou na Itália.
Um chamou a atenção tanto no livreto quanto nos cartazes nas estações de metrô – Presepi di Carta. Francesco Londonio, pintor milânes nascido há 300 anos, especializou-se na produção de presépios pintados sobre papel e é autor do ‘presépio de Germeto’, extraordinário trabalho de desenho e pintura em papel cartão que pertence ao acervo permanente do Museu Diocesano Carlo Maria Martini e é exibido pela primeira vez totalmente restaurado.
A exposição Presepi di Carta parte de um enfoque na produção de Londonio dedicada à pastoral e cenas bucólicas. Também apresenta exemplares gravados e coloridos à mão datados da época de Londonio e inúmeras folhas publicadas em Milão durante o século XIX pelos irmãos Vallardi, tradição que se estendeu até o início do século passado, com litografias a cores.
Dezembro de 1944, Campo de Concentração de Wietzendorf, na Alemanha – É o segundo rigoroso inverno dos velhos e jovens prisioneiros, fantasmagóricos nas poucas roupas em alojamentos sujos, frios e úmidos. Meses antes, reunidos durante as noites, o segundo-tenente, artesão e artista Tullio Battaglia, coordena a produção do presépio. Tinha 30 anos quando foi deportado para os campos de concentração, após o armistício de 8 de setembro de 1943. Com uma faca de batedor, uma tesoura resistente, a dobradiça de uma porta como martelo à luz de pequena luminária feita com porção microscópica da ração diária de margarina, dada por todos, nasceu esse presépio inusitado.
As estatuetas feitas com madeira das camas e tendo pedaços de arames farpados como esqueletos, trazem um pouco de cada um. O menino Jesus é confeccionado com lenço de seda do tenente Bianchi. Já o tecido de algodão listrado da bolsa do tenente Bersagliere Peroni transforma-se no vestido da estatueta representando o norte da Itália. O tenente Bersagliere Montobbio dá uma peça do seu pijama para virar turbante e faixa de um dos reis magos, enquanto a pulseira-pingente do tenente Mengoza de Vigevano torna-se o colar de outro rei mago.
Na noite de Natal, estava pronto como prova da fé e da resistência humana. Nenhum dos sobreviventes esqueceu a missa celebrada pelo capelão D. Costa que usou a bandeira tricolor italiana como toalha de altar. Ninguém. Nem mesmo o mais convicto ateu. Após a libertação, Tullio voltou para casa e doou o presépio à Basílica de Sant’Ambrogio de Milão. Apenas faltou o boi, perdido na odisseia do regresso.
Agora, em 2023, um dos artistas da associação cultural de Wietzendorf modelou e ofereceu a figura desaparecida como um gesto de reparação e justiça. Assim, depois de 78 anos, em 17 de dezembro, pela primeira vez estarão todas as figuras reunidas. É importante lembrar que no campo de Wietzendorf, entre Hanôver e Hamburgo, seis mil soldados foram encerrados em meio a privações atrozes porque, assim como outros 600 mil soldados italianos, não quiseram lutar com os nazistas, nem aderir à República Social de Mussolini. Essa história foi contada por Tullio Battaglia há 30 anos para o semanário diocesano Il nostra tempo di Milano.
Depois dessa imersão na guerra, conhecer o presépio da Basílica San Vincenzo in Prato, não muito longe da Porta Ticinese, foi um bálsamo. É uma das primeiras basílicas de Milão e a única que preserva autêntico estilo cristão primitivo, com simples componentes arquitetônicos. Ali, estátuas originais do século XIX foram organizadas em cena retratando a Terra Santa, abaixo do altar lateral da Virgem de Lourdes. E para tornar o clima mais propício, fui brindada pela música sacra.
Produzir presépios é tradição, arte e bom negócio. O estúdio de arte Rustikal foi fundado por Mussner Andreas em 1967, após frequentar o Instituto de Arte de Selva di Val Gardena e praticar com vários artesãos. A paixão pela escultura e pela criação de novos modelos foi-lhe transmitida pela sua mãe com quem aprendeu os segredos deste artesanato tradicional do vale Gardena, nas montanhas Dolomitas, famoso pela arte em talha. Na oficina familiar, a madeira adequada é cuidadosamente selecionada para cada objeto, esculpida e pintada à mão com grande atenção aos detalhes. No final, o preço de uma peça traduz o valor de seu trabalho. Uma pequenina peça pintada e exposta na Artigliano in Fiera custava a partir de 50 euros.
O livro Il Mio Presepe reúne reflexões e escritos do Papa Francisco, que nutre carinho pessoal pela tradição centenária e pelo santo que o criou. Ele destaca o relato verídico da história da quela noite, feito por Tomás de Celano (1200-1265), frade que conviveu com Francisco de Assis e é considerado seu primeiro biógrafo. Ele afirma na abertura do livro:
– Estou certo de que o primeiro presépio, que realizou uma obra de evangelização, pode ainda hoje suscitar espanto e admiração. Assim, aquilo que São Francisco começou com simplicidade, continua até hoje como genuína forma e beleza da nossa fé.
Dezembro, 1942, São Paulo – Após o casamento de meus pais, foi montado o presépio, tradição na família católica polonesa de meu pai. Ao longo dos seus 81 anos, de uma pequena casinha, o presépio transformou-se na cidade de Belém. Sofreu perdas em enchente na nossa casa do Brooklin Novo; recebeu reparos feitos pela minha mãe, que amava essa época e a montagem da pequena cidade. E, finalmente, viajou para Portugal, integrando as 28 caixas de nossa mudança para esse velho continente.
Esse presépio traduz o espírito festivo da família Miessva, hoje com seus descendentes em Vila Nova de Gaia e em Vila Franca de Xira, em Portugal; em São Paulo, Barueri e São Carlos, no Brasil; em Milão, na Itália; e em Orlando, nos Estados Unidos.
E é com orgulho em fazer parte dessa família tenaz que desbrava terras e busca sempre novos horizontes, que desejo um Feliz Natal pleno de Paz e Confraternização para você e para todo o nosso combalido mundo.
Ah… em tempo: como reza a tradição, o menino Jesus só é colocado na manjedoura à meia-noite do dia 24 de dezembro!
Nos vemos em 2024!
6 Comentários
Ah, bravíssimo texto! As ultimas fotos me emocionaram. E lembrei da vez que ele foi montado em São Carlos, quando reformados a casa com palha de milhon . meus porquinhos foram dizimados pelo cupim pois as primeiras peças eram feitas de papel machê. Sophia última bisneta do casal Ignacio e Odette montou a cena dentro do armário para fugir da curiosidade dos gatos.
Desculkpe a demora! Que bom que a tradição de alguma forma continua nas gerações seguintes, Rose. E precisamos reformar o telhado da casinha pois a palha deu cupim! Aguardamos vocês aqui para isso!
Lindíssimo texto!!
Vale como capítulo de um futuro livro.
Parabéns!
Paola
Sim, Paola. Acho que um futuro livro sobre tradições familiares na Europa…. pretensão é pouca coisa, vindo da sua tia!
Bravo Lena! Foi uma bela viagem e nós aprendemos bastante te acompanhando. Na Italia estou em casa e as vezes me esqueço como é rica sua historia. Hoje lendo seu relato me como ver que vc tambem ficou fisgada pela bella Italia! Grazie mille!
Demoro mas respondo! Italia é um belo cenário e perfeita em época natalina!