A transformação de uma engenheira florestal em inventora de receitas apetitosas
Há alguns meses, em um evento promovido pela Câmara de Comércio e Indústria Luso-Brasileira, provei um chocolate com ‘sabor dos deuses’ e conheci a criadora daquela delícia, uma portuguesa com um ar valente e decidido, que crescia de tamanho ao falar de sua empresa e produtos no meio daqueles homens altos, nascidos em diversos países, A surpresa seguinte foi descobrir que tanto sua empresa quanto sua moradia ficavam em Vila Nova de Gaia, sítio onde resido. Vamos combinar que uma chance dessas não se escapa!
Meses depois, conversava com Raquel Lima, a CEO da Pedaços de Cacau. Com 46 anos, casada e duas filhas, é licenciada em Engenharia Florestal pela Universidade de Trás- os-Montes e Alto Douro (UTAD) e especializada em Sistemas de Informação Geográfica, com mestrado na Universidade de Girona, em Espanha. Mas, espera. O que chocolate tem a ver com florestas, sem ser a historinha infantil de João e Maria? Aguardes e verás…
Para Raquel, ser engenheira florestal era o mais próximo do contato com a natureza, hábito cultivado como escuteira durante uma década. Foram 13 anos dedicados de forma profissional à natureza na Forestis – Associação Florestal de Portugal, organização não governamental de âmbito nacional em Portugal, para apoiar ativamente a gestão, a defesa e o associativismo na floresta privada e comunitária. A Forestis congrega 33 Organizações Proprietários Florestais (OPF) associadas, com âmbito de atuação sub-regional, e que representam e apoiam tecnicamente mais de 17.500 proprietários florestais, segundo seu site. Traduzindo para nosso imenso Brasil, é uma associação que auxilia os proprietários de fazendas ou de terras cultiváveis a preservar suas reservas naturais, como conta: “Nós planeávamos o projeto, implementado pelas associações. Aprendi imenso sobre gestão, orientação e planeamento e relacionar-me ainda mais com as pessoas”.
Não dá para falar em florestas sem pensar em incêndios – especialmente às vésperas de mais um verão europeu. Raquel observa que as periódicas mudanças de governos geram alterações que impactam na vida florestal. Uma árvore precisa de dez ou 15 anos para crescer e é necessário manter as normas para que os resultados trazidos por ela sejam notados. E isso a afetava: “As diretrizes eram constantemente mudadas, o que era um bocado desmotivante. O outro lado desmotivador é que um projeto de proteção florestal indica os riscos de incêndio, dá orientações de limpeza correta e frequente, mas nem sempre é seguido pelo vizinho do proprietário que recebe as orientações da ONG. A consequência está nas notícias dos meios de comunicação: “Não basta só cuidar, até porque é tudo integrado. Tem que ser uma junção de esforços”.
Enfim, o chocolate em cena traz o sabor dos deuses
A conversa regada a café e chocolate segue e quando o tema chocolate entra em cena, ela esboça um largo sorriso: “Costumo dizer que se a minha sobremesa não tiver um bocadinho de chocolate, não é sobremesa!”. Tudo começou em um Natal há cerca de 10 anos. Como estava a trabalhar, decidiu oferecer algo feito por si aos familiares e, opção natural, pensou em chocolate. Então, mãos à obra! Surgiam assim seus primeiros bombons, colocados em caixas personalizadas. E foi um sucesso se considerar sua falta de talento para bolos e outros doces – “meus bolos não cresciam e não conseguia desenformar”. Entretanto, alguns bombons sobraram e, com o passar do tempo, ficaram esbranquiçados. O que seria?
Entra em cena a temperagem, necessária para conservar o chocolate, levando-a às formações e à paixão pelo mundo novo que se apresentava. Como toda teoria demanda prática, a consequência foi natural – muitos chocolates e sem tantas festas a ofertar. Começou a vender em pequenas porções para familiares e amigos.
Até que…
Certo dia, uma amiga pede bombons para presentear amigos em Paris. Com a primeira encomenda na mão, fica com um problema: “Eu não tinha marca, caixas, nada. Então reuni um grupo e disse – ‘meus amigos, eu preciso da vossa ajuda. Eu tenho que criar um nome para uma marca de chocolate. E com meu caderninho, anotava as sugestões. E ficou o nome. Pedaços de Cacau para Amigos”.
O designer do logotipo argumentou que “Pedaços de Cacau” era ótimo, mas o restante estava demais (que seria do mundo comercial sem os designers de marca, não?)
Passo seguinte foi a página no Facebook e associar-se à uma loja online. Diogo, seu marido e engenheiro, argumentou na altura: ‘Mas quem vai comprar chocolates online, sem experimentar?’
Raquel tem características comuns a muitos empreendedores – acumulam o emprego em horário integral com o início do negócio – determinação e coragem. Sua montra era a loja online. O sonho virava realidade – e com riscos de se tornar um pesadelo, pois as encomendas cresciam em uma jornada dupla de trabalho, estendida aos finais de semana. Tirava férias para trabalhar e, ao mesmo tempo, exercia a maternidade com uma filha de quatro anos e uma bebé. Então, novamente Diogo entra em cena: ‘Então, se vais tirar férias para trabalhar, não pode ser. Tu decides. Ou a engenharia florestal ou ao negócio”. Estava criada a batalha entre emocional e racional.
Segundo ela, a razão recomendava seguir no emprego e o coração gritava: chocolate, chocolate! Então, seu chocolate ganha uma medalha em concurso nacional – a primeira de muitas – e vem a validação e reconhecimento de especialistas. Com o apoio da família, toma a difícil decisão, estimulada por Diogo, seu fã de primeira hora, como conta: “ele disse – ‘Vai, eu estou aqui para o que precisares’”. Demissão aceita, surgiram sentimentos de alegria e tristeza, comuns a empreendedores que sabem que o caminho muitas vezes não tem volta.
Decidida, saiu da cozinha licenciada e montada em sua casa para um espaço de 90 m². Na pandemia, a equipa era de quatro pessoas e os chocolates Pedaços de Cacau podiam ser encontrados no El Corte Inglês do Porto e de Lisboa, e em várias garrafeiras. As vendas online cresciam, incluindo clientes como O Boticário.
É importante destacar que Raquel trabalha com chocolate preto. O cacau da África Ocidental é transformado na Bélgica, na Itália e na França, e ela adquire as pepitas de chocolate com diferentes percentagens.
Criou o serviço ‘chave na mão’ (“tailor made”), produtos feitos sob medida para atender aos desejos do cliente com chocolates e recheios diferentes, colocados em embalagens personalizadas.
Hoje, aos 10 anos de empresa, a CEO de Pedaços de Cacau aponta três fatores de sucesso – os 23 prémios nacionais e internacionais, as personalizações de receitas e de embalagens e o uso de chocolate negro integrado a produtos portugueses como as amêndoas da região de Trás-os-Montes, entre outros.
A empresa está em sede nova desde 2021, em 400 m² de um prédio na freguesia de Vilar do Paraíso. Ali estão a produção, a embalagem, escritório e a loja física e uma equipa jovem com seis pessoas.
Sweet Portugal surge no caminho
Empreendedora de raiz, Raquel fez uma parceria com a Sweet Portugal – produtos regionais embalados em caixas decoradas como pequenas casinhas que trazem elementos de design português como os tradicionais azulejos, portas e janelas coloridas. Tempos depois, comprou a marca e incluiu bolachas crocantes com chocolate de receita especial, compotas, amêndoas – ofertados em eventos em sítios como Lisboa, Porto ou Algarve. Com olhar entusiasmado, explica: “Fazemos o que mais gostamos: espalhar felicidade pelas pessoas!”
De Portugal para o mundo
Seja no mercado europeu, seja no mercado global, não resta dúvidas que ela irá conseguir com seu jeito firme e descontraído ao mesmo tempo. Afinal, quem resiste a um ótimo chocolate?