Matosinhos não seria a mesma sem um português que fez a sua fortuna no Brasil
A história desta cidade com 173 mil habitantes, numa área de cerca de 63 km², entrelaça-se com o Brasil, mais especificamente com um português imigrante que fez fortuna no Amazonas no início dos anos 1900. E que vale como reflexão em tempos de questionamento sobre a imigração em vários países europeus.
Afinal, em terras tropicais do final dos anos 1840, os portugueses eram o maior número de imigrantes livres no Brasil. A imigração portuguesa foi feita no Brasil por muitos jovens entre 13 e 17 anos (a mesma média de idade dos escravos africanos) de regiões rurais e dos Açores. Pagavam a passagem arcada pelos senhorios brasileiros com trabalho gratuito por até cinco anos. Muitos foram vítimas de febre amarela, das más condições de habitação nas zonas mais precárias de cidades como o Rio de Janeiro e das jornadas exaustivas de trabalho. Na altura, era denominada pela imprensa como ‘escravidão branca’. No final dos anos 1800, competiam com os escravos recém-libertos e assumiam funções que muitos brasileiros associavam ao trabalho escravo, como condutor de elétrico ou vendedor de doces.
E não era só na capital brasileira que contribuíam como força de trabalho. No Amazonas, foram mãos portuguesas que transformaram a capital amazonense em cidade reluzente na época do ouro negro, a borracha. Alguns fizeram ali a sua fortuna, como Emídio José Ló Ferreira.
Ló Ferreira nasce em 1864 na aldeia de Trevões, no concelho de S. João da Pesqueira (entre Espinho e Viseu), e é um dos trabalhadores que ergueram o porto de Leixões, em Matosinhos. Depois, aos 20 anos de idade, parte para o Brasil rumo a Manaus, chegando em março de 1894 em um barco com 125 pedreiros. Ali, por uma dessas obras do destino, constitui sociedade com um empreiteiro que vem a falecer e ele assume os negócios. Faz viagens frequentes entre Matosinhos e Manaus e em 1902 envolve-se com a ampliação do Porto de Manaus.
Torna-se amigo do então governador do Estado, o Coronel António Constantino Nery, o seu protetor e que esteve à frente de obras como a Biblioteca Pública, o leprosário de Paricatuba e a conhecida avenida que leva o seu nome.
De regresso às terras lusas, Ló Ferreira continua na construção de Matosinhos, onde funda o Teatro Constantino Nery, em homenagem ao seu protetor brasileiro, com capacidade para 500 lugares, espaço que é parte da história com manifestações culturais e reuniões políticas antes e depois do 25 de Abril, hoje Cine-Teatro Constantino Nery.
Ele arca integralmente com o revestimento de pedras de todo o adro (pátio externo) e dos canteiros que cercam a Igreja do Bom Jesus de Matosinhos. Da vida empresarial para a política, o caminho foi natural e é eleito vice-presidente (vice-prefeito) da Câmara da cidade, substituindo o então presidente em várias ocasiões.
Pelos seus feitos relevantes na construção da cidade, é reconhecido com o título de 1º Visconde de Trevões (a sua aldeia natal) em abril de 1909, concedido por D. Manuel II. Nos anos seguintes, constrói o seu Palacete de Trevões, que se torna marcante na então sociedade local.
Os anos da 1ª Guerra Mundial tornam-se uma oportunidade para o crescimento das pescas e a construção das fábricas de conservas. Hoje, várias dessas fábricas ainda existem e abrem para visitas guiadas, como a Fábrica de Conservas Portugal Norte, empresa familiar fundada em 1922.
Para homenagear a origem da pesca, a escultura “She Changes” — criada pela escultora americana Janet Echelman há 20 anos, está em uma das rotundas da cidade e ilumina-se totalmente com diferentes cores, consoante a ocasião. Restaurada há três anos, está suspensa a 55 metros de altura e balança com o vento, como as redes de pescadores.
E em meio a tanta pujança, começam os anos do declínio do empreendedor e empresário português. Entretanto, ao empreender no setor das pescas, que tanto admirava, não teve êxito e vê os seus bens serem consumidos. Vende o seu palacete e vive em Vila Real até seu falecimento em 1942. A casa passa por vários usos até se constituir museu. Em 1980, é decidido que a Câmara Municipal de Matosinhos será erguida ao lado da morada de Ló Ferreira e sua família nos anos áureos de sua vida.
Podes saber mais, acedendo ao programa Caminhos da História no Porto Canal, em que o historiador Joel Cleto conta esta e outras histórias do país de forma agradável e com imagens bem editadas – algumas integram este post, com crédito ao Porto Canal.
Então, em tempos de certa intolerância em círculos políticos e sociais europeus, é fundamental lembrar que há séculos os portugueses foram imigrantes no Brasil. Mais recentemente, em França durante as décadas de 1960 e 1970, para fugir da ditadura salazarista, muitos instalavam-se em bairros de lata da região parisiense, em condições insalubres de extrema miséria.
Matosinhos deu origem ao Caminho de Santiago de Compostela?
Para terminar, uma lenda que mostra que sem idas e vindas de povos, nada seríamos. Afinal, o que a cidade de Matosinhos, localizada no distrito do Porto, tem a ver com o caminho português da costa para Santiago de Compostela, na Espanha? Muito, segundo conta a lenda. E como toda lenda tem um poucadinho de verdade, vamos a ela.
No ano de 44 d.C., o corpo de São Tiago estava a ser transportado desde a Palestina até a Galiza. O discípulo de Jesus havia sido responsável pelo início da conversão da Península Ibérica ao Cristianismo, mas no seu regresso à Judeia acabou por ser morto. Então, os seus discípulos resolveram trazê-lo e sepultá-lo no noroeste da península onde havia divulgado o Cristianismo.
Durante a viagem, a embarcação passa por uma praia onde estava a ocorrer uma sumptuosa celebração de casamento entre o grande senhor romano da região, Cayo Carpo, e Cláudia Lobo. Durante as festividades, Cayo Carpo propôe um desafio aos demais cavaleiros. Aquele que conseguisse fazer o cavalo chegar mais longe dentro de água, venceria. É nessa altura que Cayo avista uma embarcação e inesperadamente, o seu cavalo corre e avança mar adentro, sem se afogar. Cayo chega à embarcação que transporta o corpo de São Tiago. Ao regressar à praia, Cayo e o seu cavalo afundam no mar. Surpreendentemente, saem do fundo do mar vieiras em tão grande quantidade que, coladas ao corpo de Cayo e do seu cavalo, permitem trazer ambos em segurança para a praia. Sãos e salvos!
Ao sair da água, Cayo estava “matizadinho” de vieiras, ou seja, com as vieiras coladas ao corpo. Por isso, a praia ficou conhecida como “Praia do Matizadinho” e com o passar do tempo acabou por se tornar “Matosinhos”. Ainda de acordo com a lenda, foi naquela praia que com o cavaleiro romano convertido teve início a associação de devoção e do caminho de Santiago.
A prova? Está naquele que é um dos seus mais emblemáticos símbolos conhecidos por todos os caminhantes: a concha da vieira.
2 Comentários
lindo texto e registro histórico. parabéns!
Resposta ainda que tardia, mas nunca é tarde para agradecer o apoio e ver que esse caminho de escrita é o acertado!