Fado, poesia e música brasileira combinam?

Só se for com o cantor e compositor António Zambujo e

a poesia de Eugénio de Andrade

Aqui perto de casa, tem uma avenida que nos conecta à praia. Avenida Poeta Eugénio de Andrade. E cada vez que por ali caminhava ou seguia de viatura, pensava quem seria o distinto poeta português. Em 8 de setembro passado, o conheci na Feira do Livro do Porto, onde estive com a amiga Marisa Santos para assistir a conversa entre António Zambujo e Raquel Marinho, divulgadora de poesia e coordenadora do projeto “O poema ensina a cair”, na Biblioteca Municipal Almeida Garrett (BMAG).. Segundo a organização da Feira, era a homenagem que faltava, como anunciado:

– Cometemos, porventura, uma injustiça ao só agora homenagear Eugénio de Andrade na Feira do Livro do Porto. É talvez extemporâneo este reconhecimento da vida e obra de um autor maior da língua portuguesa. Não sei se sopesámos devidamente quanta luz, sal, verão, azul, orvalho, amor entregou o poeta ao Porto em versos escritos com “mão certeira com a água/ intimidade com a terra/ empenho do coração”. Há uma tília para Eugénio, uma das muitas árvores que, com uma extraordinária força evocativa e emocional, o poeta cantou na sua obra: “Sem fadiga, as árvores regressam/ ao poema. Primeiro as laranjeiras,/ a seguir entram as tílias./ Sempre estiveram perto, incapazes/ de se afastarem dos pequenos/ olhos imensos”.

Uma hora sem sentirmos o tempo

Então, os Jardins do Palácio de Cristal abriram suas alamedas, para homenagear o poeta entre árvores e flores, folhas e ervas, frutos e aves – elementos recorrentes e simbólicos de sua poesia. Nascido na Póvoa de Atalaia, Eugénio viveu em Porto mais de 50 anos. “Foi aqui, em grande medida, que o “poeta da luz” forjou a sua identidade pessoal e literária. E é também verdade que o Porto ganhou uma outra aura, uma outra dimensão nos versos de Eugénio de Andrade”, como dizia:

– O Porto é só a pequena praça onde há tantos anos aprendo metodicamente a ser árvore, procurando assim parecer-me cada vez mais com a terra obscura do meu próprio rosto.

Entretanto, antes vamos as apresentações?

Eugénio de Andrade, a poesia marca território

Nasceu na freguesia de Póvoa de Atalaia, no Fundão, em 19 de janeiro de 1923 e muda-se para Lisboa aos dez anos devido à separação dos seus pais. Assim como António Zambujo, descobre a poesia ainda miúdo, aos 13 anos. Aos 20 anos, muda-se para Coimbra e aos 24 anos, torna-se funcionário público, exercendo durante 35 anos as funções de inspector administrativo do Ministério da Saúde. Por transferência de serviço, instala-se no Porto em 1950.

Ainda que tenha conquistado enorme prestígio nacional e internacional, Eugénio de Andrade sempre viveu distanciado da chamada vida social, literária ou mundana, tendo o próprio justificado as suas raras aparições públicas com “essa debilidade do coração que é a amizade”.  Recebeu inúmeras distinções, entre as quais o Prémio da Associação Internacional de Críticos Literários (1986), Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores (1989) e Prémio Camões (2001) e a Grã-Cruz da Ordem do Mérito. Aos 82 anos, falece a 13 de junho de 2005, no Porto, onde é sepultado no Cemitério do Prado do Repouso e sua campa desenhada pelo amigo e arquitecto Siza Vieira, possui os versos do seu livro “As Mãos e os Frutos”.

A obra poética de Eugénio de Andrade é essencialmente lírica, tendo sido considerada por José Saramago como uma “poesia do corpo a que chega mediante uma depuração contínua”. Além de escrever em poesia e prosa, foi tradutor de autores como o espanhol  Federico García Lorca, o francês René Char e o argentino Jorge Luís Borges. Entre os amigos, conviveram com o poeta: Agustina Bessa-Luís, Sophia de Mello Breyner Andresen, Mário Cesariny, Ángel Crespo, Marguerite Yourcenar.

Eugénio de Andrade com Agustina Bessa-Luís e Sophia de Mello Breyner Andresen.

Charme e talento

A voz e o sotaque: – A voz é um elemento que está ali para servir a palavra e a música. Só não está para mais nada. Não está para aqueles exibicionismos vocais e para aquelas coisas que eu detesto. Está só para isso, só para só para valorizar o poema. E acho que isso é de facto o mais importante. Eu tenho um sotaque um bocadinho à minha origem do Alentejo, porque usamos as vogais muito abertas e um bocadinho próximo do Brasil. Talvez o facto de eu ter começado a tocar mais no Brasil. Em Lisboa, falam um pouco a fechar, não se percebe nada. No norte, usam as vogais mais abertos. Então palavras com vogais mais abertas são mais fáceis de cantar e há truques que se aprendem quando as vogais são mais fechadas. Amália Rodrigues era a rainha disso.

A composição e as parcerias: A composição é um ato de coragem, de cometer o ato de loucura. É um bocadinho, é muito arriscado. Nas parcerias que faço, há sempre uma troca de ideias, uma sugestão e depois colocam em texto aquilo que nós temos na cabeça e isso é uma sensação fantástica. Há coisas que me acontecem que eu acho que dariam uma boa canção. E sugiro muitas vezes. Os parceiros sabem perfeitamente os temas, as palavras que eu gosto de cantar. Há palavras muito mais musicais que outras.  E a poesia está em todo o lado, nos fados existe um cuidado em escolher bem as palavras e os poemas que são cantados.

A infância: Tive infâncias paralelas. Eu tinha assim uma infância normal, andar de bicicleta e correr e jogar à bola. E havia uma outra infância mais isolada e muito ligada à música. Eu lembro-me que na casa da minha avó, por exemplo, nós tínhamos sempre instrumentos musicais, piano, acordeão, harmónica. E eu inventava uma bateria com as cadeiras da cozinha, os talheres, os tachos e já cantava algumas coisas. Na altura, em frente da casa da minha avó, vivia uma família muito próxima da nossa e o filho mais velho era clarinetista e professor no conservatório. Sugeriu que eu fosse estudar para o conservatório para ter algum conhecimento musical e o clarinete. É um instrumento até muito próximo da voz e da minha forma de cantar. Na adolescência, foi substituído pela guitarra. E foi a salvação pois imagina um tipo de 11 anos, tímido e a tocar em bandas filarmônicas! Quando começamos a sair à noite com amigos, ao terminar o jantar, era um trunfo. Pegava na guitarra e cantava umas músicas… Hoje tenho um piano, um baixo, uma harmónica – uma memória de infância. Os instrumentos me ajudam muito no processo de composição musical para pensar nos arranjos.

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Saboreie as imagens e o poema É urgente o amor na voz do actor e narrador Bruno Batista 

António Zambujo, o charme em canto

O charmoso António José Rodeia Zambujo nasceu em Beja a 19 de setembro e chegará aos 50 anos em 2025. Desde criança esteve conectado ao canto alentejano. Começou a tocar clarinete aos 8 anos e desde miúdo, deslumbrou-se com nomes ligados ao fado como Amália Rodrigues. Aos 25 anos, integra o elenco do musical “Amália”, em que interpreta o papel de Francisco da Cruz, o primeiro marido de Amália. Em 2002, lança o “O mesmo fado” que recebe o prémio de ‘Melhor Nova Voz do Fado’.

Além dos concertos em Portugal iniciados em 2004, tem carreira internacional em cidades como Toronto, Paris, Santander, Sarajevo, Zagreb. Em 2006, recebe o Prémio Amália Rodrigues na categoria de “Melhor Intérprete Masculino de Fado”. Em 2015, recebe do então presidente Cavaco Silva, a “Comenda da Ordem do Infante D. Henrique”.  

Seus álbuns seguem uma trajetória de êxito e em 2016, canta “Até Pensei Que Fosse Minha”, em uma homenagem a Chico Buarque. O álbum ‘Do Avesso’, de 2018, é vencedor do Prémio José Afonso. Seguem-se os álbuns ‘Voz e Violão” e ‘Cidade.  Já se apresentou com cantores brasileiros como Chico Buarque de Holanda, Roberta Sá, Ney Matogrosso, Ivan Lins, Zé Renato, Gal Costa, dentre outros.

Entretanto, como vinho e música andam juntos, em 2023, António Zambujo, juntamente com o enólogo Luís Leão e João Pedro Freixial, abrem em Vila de Frades, capital do vinho de talha, uma loja de vinhos e espaço cultural, onde foi apresentado o single “Dancemos um slow” (que recomendo ouvir saboreando boa companhia e taça de vinho!).

Aqui, partilho algumas preciosidades coletadas na conversa no Porto em que mostra o carinho com a música popular brasileira e a influência dos compositores João Gilberto, Vinicius de Moraes, Tom Jobim em sua formação.

E para saborear o clima, clique no video abaixo

A voz e o sotaque: – A voz é um elemento que está ali para servir a palavra e a música. Só não está para mais nada. Não está para aqueles exibicionismos vocais e para aquelas coisas que eu detesto. Está só para isso, só para só para valorizar o poema. E acho que isso é de facto o mais importante. Eu tenho um sotaque um bocadinho à minha origem do Alentejo, porque usamos as vogais muito abertas e um bocadinho próximo do Brasil. Talvez o facto de eu ter começado a tocar mais no Brasil. Em Lisboa, falam um pouco a fechar, não se percebe nada. No norte, usam as vogais mais abertos. Então palavras com vogais mais abertas são mais fáceis de cantar e há truques que se aprendem quando as vogais são mais fechadas. Amália Rodrigues era a rainha disso.
A composição e as parcerias: A composição é um ato de coragem, de cometer o ato de loucura. É um bocadinho, é muito arriscado. Nas parcerias que faço, há sempre uma troca de ideias, uma sugestão e depois colocam em texto aquilo que nós temos na cabeça e isso é uma sensação fantástica. Há coisas que me acontecem que eu acho que dariam uma boa canção. E sugiro muitas vezes. Os parceiros sabem perfeitamente os temas, as palavras que eu gosto de cantar. Há palavras muito mais musicais que outras.  E a poesia está em todo o lado, nos fados existe um cuidado em escolher bem as palavras e os poemas que são cantados.

A infância: Tive infâncias paralelas. Eu tinha assim uma infância normal, andar de bicicleta e correr e jogar à bola. E havia uma outra infância mais isolada e muito ligada à música. Eu lembro-me que na casa da minha avó, por exemplo, nós tínhamos sempre instrumentos musicais, piano, acordeão, harmónica. E eu inventava uma bateria com as cadeiras da cozinha, os talheres, os tachos e já cantava algumas coisas. Na altura, em frente da casa da minha avó, vivia uma família muito próxima da nossa e o filho mais velho era clarinetista e professor no conservatório. Sugeriu que eu fosse estudar para o conservatório para ter algum conhecimento musical e o clarinete. É um instrumento até muito próximo da voz e da minha forma de cantar. Na adolescência, foi substituído pela guitarra. E foi a salvação pois imagina um tipo de 11 anos, tímido e a tocar em bandas filarmônicas! Quando começamos a sair à noite com amigos, ao terminar o jantar, era um trunfo. Pegava na guitarra e cantava umas músicas… Hoje tenho um piano, um baixo, uma harmónica – uma memória de infância. Os instrumentos me ajudam muito no processo de composição musical para pensar nos arranjos.

O fado e a escola: Na altura, na escola, não podia dizer que estudava música clássica no conservatório. Podia até dizer que gostava de música tradicional. Era muito gozado na escola e não tinha muito sucesso por sexo oposto.

A descoberta de Vinicius de Moraes, Tom Jobim e João Gilberto: Quando os descobri, percebi a importância que aquele disco ‘Chega de Saudade’ teve na história da música do mundo, não só na história da música brasileira.  Eu lia os poemas do Vinícius sozinho em casa em voz alta, porque eu gosto mais de ler poesia em voz alta, faz-me sentir-me. Parece que é como se estivesse a apaixonar pelas palavras. E pensei: isto é uma coisa incrível. E foi de facto muito importante na minha formação, enquanto músico e enquanto ouvinte. E pensava “quero fazer qualquer coisa parecida com isto”. Ao ouvir o João Gilberto, eu percebia o que era servir à música.

A tristeza e a emoção: Sou um tipo triste e gosto de ser triste. Provavelmente terá a ver com a minha natureza. Sempre fui assim mesmo em criança. Lembro-me de pôr a me isolar muitas vezes e não vejo mal nenhum nisso. Eu sou triste e já me deu muitas horas de terapia. E gosto de cantar coisas tristes também porque me emociono. Se não me emocionar, não me toca. Há coisas alegres que me tocam também. Eu gosto imenso. Eu emociono muitas vezes a ouvir as pessoas a cantar. É um bom sinal que aquilo que nós fazemos chega ao público e esse reconhecimento é o melhor que se pode ser.
No palco: No começo, eu ainda não tinha a minha zona de conforto. Pedia um tripé porque tremia muito os braços e as pernas. E pensava: Isto não pode ser, não posso estar a fazer aquilo que mais gosto de fazer e não poder fazê-lo, por quê? Por causa da timidez! E a guitarra funcionava então como um escudo. Ou seja, permitia poder fazer aquilo que me apetecesse e estar ao mesmo tempo protegido de tudo, do que quer que fosse. Não do público, claro.

E para seguir no ritmo, veja esse outro videoclip.  

Descobrir António Zambujo, Miguel Araújo, Os Quatro e Meia, Deolinda, Sara e tantos outros cantores e compositores jovens dá-me muito gosto!

Chorinho em Matosinhos

E para não dizer que não sinto falta do chorinho brasileiro, concluo com uma boa sugestão. Se sentes saudades de ouvir um bom chorinho, programe-se para o dia 18 de dezembro, a partir das 19h00, estar no Teatro Municipal Matosinhos Constantino Nery em um evento fruto de parceria com o Clube do Choro Porto. O repertório inclui grandes nomes como Waldir Azevedo, Pixinguinha, Joaquim Calado e Aníbal Augusto Sardinha, tocados e cantados pelos músicos Chico Bastos, Caio Fernandes, Felipe Bastos e a participação especial da cantora Patrícia Lestre.

Segundo a divulgação, a performance promete transportar o público para a essência do choro, com interpretações originais e arranjos únicos que homenageiam a música brasileira e reforçam a interação cultural entre Portugal e Brasil. Espero-te por lá, em  Matosinhos, que adoro! 

Lena Miessva

Jornalista & Escritora & Blogger

1 Comentário

  • Marisa Santos

    Amei o texto. Adoro ler suas crónicas. Obrigada pela viagem… continuemos

  • José Cascão

    maravilhoso texto, como de costume. obrigado por me apresentar esse poeta que dá nome à avenida que liga à praia. os demais são meus velhos conhecidos. Zambujo é o nosso Chico Buarque. e só não estarei nesse chorinho em Matosinhos, porque estarei a descer pro Algarve encontrar e lamber a cria. bjo.

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Olá, Sou Lena Miessva

Após percorrer várias estradas da vida no Brasil, Lena Miessva inicia um novo caminho em Portugal. Aprendizados nas relações humanas, na comunicação interpessoal e aprimoramento da escrita são seus focos principais nesses tempos de mudanças globais, locais e pessoais.

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