Terceira exposição de Eleandro Evangelista em Cunha... e muito mais
Viajar é sempre bom, mas viajar com amigos é um presente do universo. Os meus amigos Dora Carvalho de Magalhães, Carlos Robertson Ramiro e Joyceline Ljubislavic (Dora, Carlinhos e Joyce) e eu planeámos durante meses uma viagem de dois dias para Cunha, cidade no leste do estado de São Paulo, próxima de Paraty (que fica no Rio de Janeiro). Mas, para ser fiel à verdade, esta viagem foi desejada há alguns anos. Era para ter acontecido em 2019. Contudo, a plantação de alfazemas (lavandas, no Brasil) não foi tão bonita e adiámos para o ano seguinte, que devastou o mundo com a pandemia.
Em 2023, mudei-me para Portugal. Então, em setembro de 2024, finalmente, os astros se alinharam e, na minha viagem ao Brasil, concretizamos o desejo, incluindo Lígia Marques Schincariol, que logo se tornou amiga e participou no clima de cumplicidade da viagem. No dia anterior, dormimos na sempre acolhedora casa da Dora e do Carlinhos em Embú das Artes e acordámos às quatro e meia da manhã para uma aventura tão esperada.
Na preparação, vale o registro das dicas avaliadas pelo jornalista e amigo Joás Ferreira de Oliveira, que mora numa das montanhas de Cunha, com uma janela maravilhosa que aprecio há vários anos no Facebook.
Cunha está inserida no Parque Nacional da Bocaina, concebido em 1971 na divisa entre São Paulo e Rio de Janeiro para proteger a Mata Atlântica a partir da construção da estrada Rio-Santos, iniciada na altura. É também considerada uma estância climática do Estado de São Paulo, e, como tal, recebe uma parte maior de verbas do governo paulista para a promoção do turismo regional.
Ali, há boas opções de hospedagem. Ficamos na Pousada dos Viajantes do Tempo, pertencente a um casal de paulistanos. Tudo muito bem cuidado e com o ar de interior, cercado pelos morros verdes. Além de boas instalações e preço justo, tem um café da manhã dos deuses!
A cidade alberga o Lavandário, famoso pela sua plantação de lavandas, mas o que mais vimos foram os canteiros de girassóis, pois o clima está muito seco (mais um dos reflexos das mudanças climáticas). Na loja, comprei vários sabonetes e perfumes à base de lavanda e outras ervas e aproveitámos para saborear gelados e cafés com toques de lavanda.
Em frente, visitamos o Contemplário com trilhas e espaços para apreciar o pôr do sol.
Cunha ostenta desde 2022 o título de Capital Nacional de Cerâmica de Alta Temperatura, oficializado pelo senado brasileiro (em Portugal, seria a Assembléia da República). A cidade promove desde 2005, o Festival Anual de Cerâmica. Com 21,5 mil habitantes, é conhecida ainda como capital do pinhão, fruto da araucária, árvore que está na lista de espécies da flora brasileira ameaçadas de extinção.
É também conhecida como a cidade dos Fuscas (veículo da Volkswagen lançado em 1953 no Brasil e que esteve presente por quatro décadas na vida das pessoas. Eu e muitos amigos aprendemos a dirigir em um fusca escola de condução. Só na primeira volta pela cidade, contei 15 fuscas! No vídeo a seguir, eles são o destaque de reportagem do Fantástico, programa da TV Globo, feita pelo jornalista Mauricio Kubrusly. Vale assistir!
Mas vamos ao que interessa: a cerâmica!
A prática de cerâmica ali desenvolvida é a chamada cerâmica de autor e vale dizer que a cerâmica existe na região desde a época dos índios da etnia dos tamoios. Entretanto, há 49 anos, um grupo de artistas instala-se ali e os artistas coordenam a construção do primeiro forno noborigama, uma técnica de cerâmica de alta temperatura trazida do Japão e que foi considerado o mais eficiente forno para alta temperatura na era pré-industrial. Alimentados à lenha, a temperatura interna dessas fornalhas pode atingir patamares superiores a 1.400 graus centígrados.
As câmaras interligadas em patamares ascendentes garantem um controle localizado da temperatura e uma economia de combustível, pelo aproveitamento do calor usado na câmara anterior, permitindo a queima simultânea de grande quantidade de peças.
Na década seguinte, a cidade torna-se o lar de mais artistas e ceramistas com seus ateliês. Visitamos o ateliê Suenaga & Jardineiro, onde conhecemos as quatro câmaras interligadas em aclive e chaminé na parte posterior, atingindo temperatura de 1400°C. Ali são queimadas pelas de cerâmica modelada, pré-queimada, pintada, esmaltada, enfornada. A próxima abertura dos fornos está prevista para 9 de novembro. Então, se estiver em São Paulo, não perca essa chance!
A parada seguinte foi a Casa do Artesão, que abriga e comercializa peças de artistas locais das mais variadas técnicas – pintura, tricô, cerâmica, esculturas em madeira. É uma sociedade sem fins lucrativos fundada em 1985 para divulgar e comercializar o trabalho dos artesãos e artistas da cidade de Cunha. Hoje tem mais de 60 artistas e artesãos e apresenta uma diversidade interessante de artesanato e arte.
Obras vistas por deficientes visuais
No mezanino, são montadas exposições temporárias. Ali conheci o artista Eleandro Evangelista que se descobriu no mundo cerâmico. Eleandro faz releituras de obras em cerâmica de artistas como Picasso, Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti, Portinari, usando as linhas de baixo relevo em cerâmica. Isso permite que um deficiente visual possa conhecer sua arte. Morador de Piracicaba, onde é empresário do setor de embalagens, está em sua terceira exposição em Cunha.
A sua história pessoal mostra que as lembranças de alguém querido podem abrir portas inesperadas. Há cinco anos, após perder sua esposa vítima de câncer, Eleandro iniciou um hobby, a conselho das filhas. Escolheu a cerâmica. Entretanto, percebeu que fazer chavenas ( xícaras no Brasil), pratos, e outros utensílios não era exatamente algo que o motivava. Até que certo dia isso mudou como conta:
– “Estava olhando umas fotos da minha esposa. Ela fez alguns belos ensaios fotográficos quando ficou ‘carequinha’ por conta do tratamento e comecei a reproduzi-las na cerâmica. Gostei do resultado e pensei: por que não fazer releituras de obras de artistas? Escolhi então artistas com traços definidos e grossos para produzir a escavação na cerâmica. E comecei a conviver mais com as obras de Tarsila do Amaral, Portinari, Di Cavalcanti, entre outros”.
Cada obra sua demora cerca de dois meses com duas queimas em forno elétrico, após abrir a massa de argila, desenhar e escavar, aplicar o esmalte, ir para nova queima para vitrificação. A mostra em Cunha foi montada com 130 peças e quando conversamos, já havia vendido cerca de 30.
Abaporu vai para Tarsilinha do Amaral
Entre as vendidas, havia a releitura de Abaporu, de Tarsila do Amaral, comprada por um casal. Eleandro conta que enquanto a mulher foi pagar no piso térreo, o marido comentou que ela era parente da Tarsila:
– Duas horas depois, ela me adicionou no Instagram, a agradecer e parabenizar. Imagina só que honra!.
Quem quiser conhecer sua obra, pode encontrá-lo no Instagram com @evangelistaeleandro ou por e-mail evangelistaeleandro@gmail.com. Ou ainda ir em sua quarta exposição em Cunha, já agendada para setembro de 2025.
Desfrutar Cunha inclui o contato mais próximo com a natureza. Fomos até o Canto das Cachoeiras, onde eu, Dora e Lígia enfrentamos a água fria. Não há mal-estar que permaneça no corpo e na alma depois de deitar-se nas pedras e deixar a água cair! Joyce ficou na beirada ao lado de Carlinhos, encarregado das fotos!
A história de Cunha cruza-se com Portugal
Como tantas outras, a história dessa região cruza-se com Portugal. Em 1597, uma expedição portuguesa comandada por Martim Correia de Sá sai do Rio de Janeiro, desembarca em Paraty e passa pela Trilha dos Guaianás. O objetivo: combater os índios tamoios, aliados dos franceses contra os portugueses. Já em 1730, viajantes fundam um povoado onde a família portuguesa Falcão ergue uma capela, e o lugar passa a ser conhecido como “freguesia do Falcão” (em Portugal, freguesia é o bairro de uma cidade).
No início do século XVIII, é erguido o posto para controlar o fluxo de ouro procedente de Minas Gerais. O governador da Capitania de São Paulo, Francisco da Cunha e Meneses, eleva a vila e dá o nome de Nossa Senhora da Conceição de Cunha. No século seguinte, as antigas trilhas são calçadas e ampliadas para transportar o café, o ouro verde brasileiro.
Paraty, sempre bela
A viagem para Cunha não seria a mesma sem ir a Paraty. Então, no dia seguinte, após o descanso dos passeios e de banho de cachoeira, da comida caseira deliciosa do restaurante Quinta da Cau, decidimos seguir para Paraty.
Estar naquela região e não visitar Paraty, para mim, não teria muita graça. Afinal, durante 17 anos era um dos passeios preferidos sempre que passava alguns dias na casa de minha irmã Vera Cecília e meu cunhado Enrico na praia de Itamambuca.
Isso não foi planeádo, mas o que seriam as viagens sem mudar o planeamento só um bocadinho? A cidade preparava-se para mais uma Feira Internacional do Livro de Paraty, a famosa Flip. Percorremos as ruas, fizemos comprinhas e visitamos a Casa da Cultura de Paraty.
Naquele espaço cultural, está uma bela exposição mostrando a história cultural da cidade de 1945 a 2019 (olha a coincidência – no mesmo ano que planejamos visitar Cunha!). As 21 instalações contam a história da cidade que de certa forma, tornou-se o retrato da arte, do artesanato, deixando de ser conhecida apenas como entreposto do ouro que de Minas Gerais, seguia para Portugal, um dos pontos de saída do metal precioso das minas brasileiras. Nas janelas, a vista sempre deslumbrante da cidade.
A partir da década de 1970, Paraty vêm iniciar um movimento de artes cênicas. Eram os anos mais pesados da ditadura e vários cineastas refugiam-se na cidade onde produzem filmes e surge um movimento de jovens criando uma contracultura em resistência na cidade do Rio de Janeiro. Desde então, Paraty tem sido palco de festivais de cinema, de teatro de rua, de exposições de aquarelistas e ceramistas, de teatro de marionetes, entre outras formas de expressão da arte. A cidade tem atualmente cerca de 44 mil habitantes.
Foram dois dias de passeios, risadas, caminhadas curtas, comidas e conversas gostosas, graças à cumplicidade criada nos bancos da faculdade e cultivada em décadas por meio de encontros, festas, visitas e passeios. Fica para mim a certeza de que amizade é como a cerâmica – pensada com carinho, concebida com empenho, paciência e muita vontade para que a obra fique bela e perene.
Agora, é torcer para que no futuro eu possa apresentar algumas aldeias portuguesas que tenho conhecido e amado aos meus amigos de aventuras! Que o universo diga amém!
4 Comentários
Adorei “viajar ” com você. Achei fantástica a história de Cunha. Espero que a próxima vez que vá ao Brasil ir até lá
Obrigada por este momento.
Muito gostoso de ler!
Muito bom. Queria saber mais coisas de Cunha! Na proxima vez vc conta mais!!!!!
Bravo Lena
Como sempre, adorei!! Relata exatamente meus sentimentos sobre essa viagem, que foi ótima! Beijos Lena!