Todo mundo trabalha para o seu pão de cada dia. Mas fazer o que se gosta e ainda conseguir pagar suas contas, poupar, tirar férias, viajar, celebrar com amigos e família é tudo de bom, não?
Em minhas andanças pela vida, tenho conhecido pessoas que dedicam-se e muito ao trabalho, especialmente quando estamos falando de negócios próprios.
Uma dessas pessoas mora atualmente em Canidelo. É o relojoeiro Antônio Fernando Ferreira que tem loja na galeria Quatro Caminhos. Esse nome – muito usado nas redondezas – remete à confluência entre as ruas Bélgica (que cruza o bairro de Canidelo) e Meiral. Segundo pesquisas, o que hoje é um lugar com bom comércio e serviços era uma das paradas da estrada romana de Lisboa a Astorga, cidade do norte da Espanha. Ela foi a antecessora da estrada nº 1, que hoje é a A1 – a autoestrada que corta o país de norte a sul e cujo acesso fica a dois quilômetros.
Ferreira, 66 anos, nasceu em Fafe, no distrito de Braga e há dois anos reside em Vila Nova de Gaia perto de seu filho, desde que ficou viúvo em decorrência de Covid-19. Em Fafe ainda tem duas lojas, gerenciadas pelo filho mais velho e com um relojoeiro que lá trabalha há 40 anos.
Desde menino que Ferreira gosta de relógios. Aos 12 anos e durante oito anos, foi aprender o ofício com um relojoeiro que morava em uma aldeia próxima. O conhecimento adquirido permitiu trabalhar na relojoaria Costa & Cerdeira, onde era o empregado mais bem pago. Mas queria mais e começou a consertar relógios nas horas livres. Tinha tanto trabalho que decidiu abrir seu negócio aos 22 anos. Na época, conversou com sua mulher, que disse: “não te preocupes, se alguma coisa vai mal, para comer, temos o meu salário”. Família e amigos foram contra, achando uma loucura. “Hoje”, conta com orgulho, “meu nome e telefone, se calhar, está em toda a parte do mundo, pois sempre tive muitos clientes imigrantes”.
Ferreira teve também dissabores, como os dois assaltos a mão armada nos anos de 2005 e 2006, levando milhões de euros em ouro. Entretanto, seguiu em frente, e, segundo diz, não tirou o pé do acelerador. Em sua loja há relógios de todos os tipos. Um grande cuco de madeira destaca-se pelo porte e beleza, que explica: “o relógio estava demasiado maltratado e eu precisava de um poucadinho de tempo”. Em geral, conforme o estado da peça, um conserto pode demorar três semanas a um mês.
Ali, passa 12 horas por dia em seis dias por semana. Logo cedo, limpa e deixa tudo arrumadinho. “São 53 anos a trabalhar nesse ofício e é quase como tocar um instrumento. Eu olho um parafuso e sei exatamente de onde é”, comenta, ao mostrar sua oficina logo atrás do balcão. Após o conserto, coloca sua marca na tampa do relógio com a data, como todo relojoeiro faz, para identificar o serviço feito.
E que ótimo serviço! Pude comprovar quando fui buscar o relógio de bolso todo em ouro, sem um ponteiro, sem vidro e, claro, sem funcionar. Ao me entregar a peça, informou que o relógio estava completando 100 anos. Isso mesmo – um século! Ele foi dado pelo meu avô ao meu pai quando terminou seus estudos. Agora, está funcionando perfeitamente!
Ferreira mostra orgulho e segurança ao atender seus clientes. Nesses últimos dois anos, já criou uma clientela fiel que aprecia seu trabalho executado com cuidado e presteza. Quando estava saindo, entrou uma cliente e escutei a explicação sobre o serviço: “o relógio está pronto, mas ainda não está bom à minha maneira. Mais uns dias e aí posso entregá-lo direitinho”.
A paixão pelo que se faz é fundamental. Ela está na loja de revistas e jornais onde busco minha revista semanal, seja na confeitaria onde compro pães e quitutes, seja na papelaria onde aprendi as primeiras noções de português luso. Os portugueses atendem com respeito e bom humor. Então mais uma vez constato: trabalhar é necessário e faz bem, mas é muito melhor quando se está feliz com o que se faz todo dia, toda semana. Senão, o tempo não passa e a gente adoece. Ou então, o tempo passa e a gente envelhece com a sensação de não ter vivido.
Compartilho essas palavras de Papa Francisco, do livro “Sharing the wisdom of time”. As histórias desse belo livro podem ser lidas no link http://SharingWisdomOfTime.com/
“Como é bom ver pessoas mais velhas que trabalharam a vida toda e que chegam à velhice com um profundo senso de realidade e experiência de vida. O trabalho permite que eles se envolvam com o mundo, com as pessoas, com a Terra e com tantas circunstâncias, de modo que não estejam apenas conversando consigo mesmos. O trabalho sempre nos abre para o diálogo. Pessoas mais velhas que trabalharam para construir um lar e criar seus filhos, que enfrentaram desafios e conquistaram um senso de dignidade, proporcionam um testemunho maravilhoso aos jovens. Elas seguiram seus sonhos e trabalharam para alcançá-los da melhor forma possível”.
Então, independente da etapa de vida que está agora, deixo uma pergunta como reflexão: e você, está feliz com o que faz?
#relógio #Ferreira #Fafe #Portugal
#PapaFrancisco #SharingWisdomOfTime #trabalho
8 Comentários
Lindo texto, Lena! Adorei,
Que bela História de vida! Nos inspiram a continuar trilhando nosso caminho, valorizando as pessoas aos bens. Obrigado Lena por nos contar e encantar com seu texto.
Que bom que gosto, Octavio! Inspirar faz parte da arte da escrita!
Linda a história do sr. Ferreira, a paixão pelo que faz, o cuidado e a excelência na entrega. Lição de vida contada pelo amor aos relógios. Parabéns, Lena, pelo seu trabalho e devoção pela escrita.
Desculpe a demora, Diva. Mas agora está tudo na rotina na gestão do site. Que bom que se tornou leitora… E aguarde que o livro autobiografico está sendo preparado!
Acabei de ler e amei o artigo. Traz integridade, não importa a idade. Traz esperança de recomeço também.
Gostei muito da historia do relojoeiro!
E respondendo sua pergunta: sim gosto muito do que faço! Gosto de pintar e gosto de ensinar italiano!
Muito bem !@ E fas as duas artes (pois ensinar é uma arte) com primor!