Um armênio compartilha seus tesouros com o mundo

Um mergulho rápido na vida de um homem que fez história e escolheu Portugal como sua última morada

O texto é longo para um post, mas acredite, vale a pena!

Venha comigo nessa volta pela história em séculos

Se você pretende iniciar sua viagem por Portugal a partir de Lisboa, precisa incluir em sua agenda algumas horas na Fundação e Museu Calouste Gulbenkian para conhecer uma das 12 coleções particulares mais importantes do mundo.

Calouste Gulbenkian, um arquiteto geopolítico e colecionador nato

Gosto de saber a história de quem dá nome aos museus e fundações. Durante horas de uma sexta-feira quente em Lisboa pude admirar as obras em um bem cuidado museu  graçar ao espírito inusitado do colecionador Calouste Gulbenkian. Cada um com suas manias – eu gosto de saber a história depois de visitar o local – tem um sabor de ‘quero mais!’.

Os espaços levam o visitante para séculos de história

O percurso começa na Antiguidade com peças desde o Império Antigo até a Época Romana. Segue por Grécia, Roma e Mesopotâmia, passa pelo oriente islâmico, pela Armênia (terra do colecionador), China e Japão. Três salas são dedicadas às obras da  Europa do século XII ao século XIX. A cereja do bolo fica pelo espaço dedicado à René Lalique, de quem Calouste Gulbenkian foi amigo e admirador incondicional.

Uma pausa para o gostoso ‘Imperial” e apreciar a vista

No final, pausa para um belo almoço no restaurante que dá para o jardim Gulbenkian – local de passagem para lisboetas e residentes na capital portuguesa e moradia para várias espécies de aves – claro, como não podia deixar de ser, dos pombos que insistem em compartilhar a mesa consigo.

A exposição sobre 50 anos da Revolução dos Cravos abre espaço para Maria Lamas, mulher incrível à frente do seu tempo com sua obra prima as Mulheres de Meu País
Nesse ano, como parte das celebrações dos 50 anos da Revolução dos Cravos, o Museu abriga a mostra Censura e Resolução, Livros Proibidos no Século das Luzes, ao exibir exemplares editados ao longo do século XVIII, adquiridos por Calouste Gulbenkian. E a exposição que lá estava era de ninguém menos que Maria Lamas – com sua vida, e o livro “As Mulheres de Meu País”. Confesso que me tornei fã dessa incrível portuguesa à frente de seu tempo.

Afinal, quem é o armênio Calouste Gulbenkian?

Se hoje vemos a força de marcas como Shell, BP, Exxon Mobil, assim como a força da exploração do petróleo no Oriente Médio, muito – ou quase tudo – deve-se ao armênio Calouste Gulbenkian.

Nascido em 1869 em Istambul (quando era Constantinopla), no Império Otomano,  Calouste Sarkis Gulbenkian forma-se aos 18 anos em Engenharia e Ciências Aplicadas, e com fluência em inglês e francês. Casa-se com Nevarte Essayan, dividindo sua vida entre o Oriente Médio e o Ocidente. Na Segunda Guerra, fixa-se em Lisboa, onde vive até 1955, falecendo com 86 anos – algo inesperado para si, pois acreditava que viveria até os perto de 106 anos, como seu pai.

Colecionador nato, conta-se que suas primeiras peças (moedas gregas antigas) foram adquiridas nos seus 14 anos. Sua coleção de moedas comporta hoje 6.440 peças da Antiguidade até início do século XX. Já suas aquisições de obras de arte ocorrem desde o final do século XIX até 1953.

O ouro negro a serviço da cultura e do ensino

Aos 20 anos, Calouste redige estudos sobre o potencial do petróleo e que chamam a atenção do ministro das Minas que pede ao jovem engenheiro um relatório sobre as jazidas petrolíferas do Império Otomano, em especial as da Mesopotâmia (Iraque). A viagem é uma feliz armação do destino – quando conhece um eminente concessionário dos campos de petróleo em Baku e que o introduz às figuras influentes do petróleo.

Primeiro Oleoduto transnacional do mundo, Iraque-Mediterrâneo, construído por Iraq Petroleum Company (IPC) que Calouste detinha a famosa participação de 5%

Calouste acreditava na exploração racional daquela fonte de energia e, como hábil negociador, é considerado o arquiteto do equilíbrio geopolítico ao conduzir negociações com britânicos, holandeses, alemães, turcos – para atingir esse objetivo e conseguir por meio da outorga de concessões, a exploração organizada e pacífica dos recursos naturais do Oriente Médio.

Cria sua empresa, a TPC, quando torna-se conhecido como ‘Senhor Cinco por Cento’ – o percentual final após redução de sua participação para manter no grupo os grandes players internacionais. Entretanto, o equilíbrio de forças cai por terra com a Primeira Guerra Mundial e suas consequências. Depois, com a entrada de americanos na exploração, reorganiza a TPC em IPC – Iraq Petroleum Company)

– “Só o melhor é suficientemente bom para mim” – esse era seu lema ao adquirir as obras em antiquários e em leilões, sempre mantendo discrição como dizia: “a privacidade é o bem mais precioso que o dinheiro pode comprar”.

Dono de autoconfiança e força de caráter, era um homem tímido, sensível e nervoso. Além das obras de arte, amava a natureza (hoje em dia, isso pode parecer controverso em função da origem de sua fortuna). Prova disso é a propriedade adquirida em 1937 na Normandia onde cria um cenário ímpar de jardins, gramados, árvores e pontos de água.

Volta às origens

A ciência e a medicina sempre receberam recursos de Gulbenkian

Calouste era acima de tudo armênio, preocupado com o destino dos seus compatriotas no mundo. Concede bolsas de estudo de medicina, de agricultura e de prospecção petrolífera, organizadas depois em sua Fundação. Além disso, doa equipamentos a hospitais e investe para montagem de dispensários para atender populações que sofriam de doenças dos olhos (tracoma) ou infecciosas (malária). Importante ressaltar que essa atitude tem a ver com sua educação, pois seus pais foram os primeiros mantenedores do Hospital São Salvador construído em 1832 em Istambul. 

A Fundação Calouste Guilbenkian, criada em 1953 seguindo a legislação portuguesa, é herdeira de sua fortuna. Uma das primeiras tarefas do primeiro presidente da instituição, José de Azeredo Perdigão, foi reunir em Lisboa todas as obras de arte de sua coleção espalhadas por Londres, Paris e Washington– em função das duas guerras mundiais.

Nunca os livros percorreram tantos quilômetros

A criação da Fundação Calouste Gulbenkian ocorre no primeiro período da ditadura de Salazar. Os indicadores sociais e econômicos de Portugal são os mais atrasados da Europa – população predominante no meio rural, cerca de 70% de analfabetismo, alimentação e saúde pública deficientes, trabalho infantil, sistemas educativo e social praticamente inexistentes. É nesse cenário de carência absoluta que a instituição lança suas primeiras iniciativas, com prioridade para a educação – começando pelo ensino secundário – cria bibliotecas fixas e itinerantes que percorrem todo o país. Tudo em sintonia com seus pilares: educação, arte, ciência e beneficência. E vai além do continente, com projetos nos países lusófonos na África e em Timor, em que também preserva monumentos históricos conectados com a história portuguesa.

No âmbito internacional e não português, as primeiras décadas foram dedicadas às comunidades armênias da diáspora, ao Reino Unido e aos países do Oriente Médio – Iraque foi o escolhido inicial. Esse cenário muda com a nacionalização do petróleo do Iraque e depois os demais países da região e, após a Revolução dos Cravos, volta-se para o solo português. Atualmente, há participações em exploração de petróleo em outros países, como Cazaquistão, Brasil, Angola e Argélia, administrados por meio da sociedade Partex.

O então jovem Estado democrático investirá nos domínios contemplados pela Fundação e com os aportes da Comunidade Europeia, recebidos constantemente após 1986, ganha forças para aproximar-se dos padrões das demais nações europeias

A Fundação amplia sua atuação internacional

Com isso, a Fundação redefine sua estratégia com planejamento a longo prazo com atenção complementar àsCiências e à sociedade em uma atuação internacional com foco no ambiente, na inserção social, no diálogo intercultural e religioso, nas migrações e a mobilidade, na valorização do capital humano. Surgem os ciclos de conferência, cursos de formação. Edições de obras, espetáculos,  documentários, filmes. Reforça assim a visão internacional de seu idealizador. Edições de obras, espetáculos,  documentários, filmes. Reforça assim a visão internacional de seu idealizador. O cidadão do mundo Calouste Gulbenkian.    

Rio de Janeiro abriga Centro de Artes Calouste Gulbenkian

A Cidade Maravilhosa abriga o Centro de Artes Calouse Gulbenkian no centro. Se moras no Rio, basta clicar aqui e saber mais sobre os mais de vinte cursos, incluindo artes visuais, artes aplicadas, música e teatro.

Gravura, um dos cursos oferecidos

Balanço de hoje

A Fundação tem cerca de 500 funcionários, conselho de administradores majoritariamente portugueses com um membro pertencente em linha direta à família do fundador – hoje seu bisneto Martin Essayan. O complexo arquitetônico abrange um auditório de 1200 lugares, quatro anfiteatros polivantes, uma área de congressos, duas galerias de exposições temporárias e uma biblioteca de arte criada a partir da biblioteca pessoal de Gulbenkian com mais de 190 mil volumes.

Tudo isso rodeado por sete hectares de jardins e ponto sde água.  A Fundação tem ainda o Instituto Gulbenkian de Ciência em Oeiras, perto de Lisboa, voltada para pesquisas biomédicas e ensinos de pós-graduação. Há ainda uma orquestra e um coro que atuam nacional e internacionalmente. E se for a Paris ou Londres, pode também conhecer os centros culturais lá instalados e administrados pela Fundação.

Enfim, espero que essa história seja inspiradora para que inclua o Museu de Arte Calouste Gulbenkian e a Fundação no seu roteiro de viagem.  Garanto que não irá se arrepender!

E fica a dica: caso esteja em Portugal, assista no dia 26 de abril, às 19:00 pela TV a transmissão direta do concerto da Orquestra Gulbenkian que terá uma obra do compositor e maestro português Nuno da Rocha e a famosa Sinfonia Heroica de Beethoven.

E finalmente, um spoiler: Se você chegou até o final do post, vai saber que em um futuro post vou abordar a coleção Lalique, a vida de René Lalique, o artista de Art Noveau e sua amizade com Calouste, dono da maior coleção de peças do artista.

Fonte: Calouste Sarkis Gulbenkian, O Homem e a sua Obra, editado pela Fundação Calouste Gulbenkian

Lena Miessva

Jornalista & Escritora & Blogger

4 Comentários

  • Bia Bansen

    Belíssimas ficas!!

  • Vera Rastelli

    Sempre é bom ter dicas culturais! E essa é acertiva!
    Vale a experiência.

  • Vera Rastelli

    Bom saber! Este Museu é precioso!

  • Lígia Dinis

    Belíssimo artigo sobre o notável Calouste Gulbenkian e a sua vasta obra. Parabéns Lena Miessva!

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Olá, Sou Lena Miessva

Após percorrer várias estradas da vida no Brasil, Lena Miessva inicia um novo caminho em Portugal. Aprendizados nas relações humanas, na comunicação interpessoal e aprimoramento da escrita são seus focos principais nesses tempos de mudanças globais, locais e pessoais.

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