Um dos segredos do Porto está prestes a ser revelado

Fernando de Castro dedicou a vida à caça de tesouros

Única foto de Fernando de Castro

Elegante, refinado e sincero. Se conseguirmos conhecer um pouco da alma de alguém através da sua casa, então, com certeza, podemos afirmar que Fernando de Castro deveria ter sido um homem elegante, refinado e sincero, como se pode deduzir a partir da sua casa. Sincero, como indicam as caricaturas que lá estão expostas. Antes de começar a pesquisar quem é este senhor no Google, deixo um alerta: Fernando de Castro viveu de 1889 a 1946. Residiu na Rua Costa Cabral, 716, no Porto, e a sua casa transformou-se num museu doado ao Porto, conforme era o seu desejo.

Algumas caricaturas de Castro

Dirigi-me lá numa manhã de sábado e, como de costume, atrasei-me um pouco (juro que estou a tentar melhorar, e desta vez foi apenas por cinco minutos!). O grupo, composto na sua maioria por norte-americanos, já estava na entrada a ouvir as explicações em inglês de Ana Anjos Mântua, a coordenadora da Casa Museu Fernando de Castro, que faz parte do acervo do Museu Nacional Soares dos Reis. Por um momento, parecia que tinha entrado numa igreja, tal era a quantidade de peças sacras entre outras profanas.

Hall de entrada, foto de Adriano Teixeira (jornal Público)
Mântua na sala de caricaturas feitas por Fernando de Castro

Durante uma hora, percorremos os três pisos com cinco lances de escadas. De onde vieram todas estas peças? Quem era esta pessoa que comprava talhas, que são verdadeiras obras de arte em madeira, e as espalhava por todos os cantos da casa – todos os cantos mesmo? Já imaginou uma enorme porta talhada em madeira pendurada no teto? E belas portas sem fechaduras, que não conduziam a lado nenhum?

Uma das surpresas: porta no teto
A cada lance, mais peças

A cada lance de escadas, mais peças surgiam. Filho de um próspero comerciante portuense, Fernando de Castro trabalhou com o pai e, após a sua morte, assumiu a liderança da empresa, sustentando a mãe e a irmã. Tinha 30 anos, era solteiro e fazia parte da burguesia abastada do Porto. Poeta e escritor, sem grande destaque, dedicou a vida a colecionar peças que colocou na sua casa, aparentemente sem qualquer ordem específica. Hoje em dia, visitar a casa é um verdadeiro desafio para manter a atenção nas explicações e não tropeçar nas escadas e nos compartimentos. Mântua explica que naquela época era aplicado o conceito “horror ao vazio”. Portanto, nenhum espaço em branco poderia ficar visível em qualquer parede, nem mesmo o mais pequeno, seguindo a tendência da época de celebrar os estilos nacionais e antiguidades no final do século XIX.

Seu quarto e a paixão pela talha

A curiosa vida de Fernando de Castro e o seu acervo atraíram a atenção de jornalistas, que fizeram uma visita guiada, resultando numa reportagem no Jornal de Notícias, a única talvez que tenha retratado os seus pensamentos e sentimentos, em 23 de maio de 1944. Após a sua morte, não existem registos, arquivos ou inventários das peças expostas no museu, o que requer investigação e catalogação, um trabalho hercúleo que Mântua lidera.

Então, retrocedamos no tempo, ainda em guerra, e deixem-me dar voz a Fernando de Castro para dar as boas-vindas aos visitantes:

“Alguém que realiza uma obra, por mais pequena que seja, como neste caso, não descansa enquanto não a partilha. Toda a obra tem no artista o seu criador e tem no público o seu destino final, e a obra só será verdadeira, só resultará assim. Qualquer criação sem crítica não terá o sol que ilumina. Eis porque, hoje, as Vossas Excelências iluminaram a minha casa, com a luz em que brilham as maiores estrelas da literatura, da ciência, da oratória e da arte portuguesa. Se a sensibilidade elevada de Vossas Excelências, dentro da vossa tolerância e generosidade, encontrarem um momento de emoção nesta casa, eu terei bendito a hora em que nela pensei e recolhido para meu prêmio e consôlo a mais enternecedora alegria. (…) Estou certo de que o gênio dos artistas maravilhosos, de tantas e tantas gerações, nesta casa representados, também neste momento, agradecem, do além, o culto e o amor de vossas excelências pela sua obra gloriosa” (sic).

Mântua e Castro têm algo em comum: a paixão pelas histórias. Se ele colecionava peças, Mântua dedicou sua carreira ao patrimônio histórico. A semente da curiosidade foi plantada em menina, aos cinco anos, quando seu avô, aposentado, a levava para passear nos museus. Cursou História da Arte, pós-graduação em arte, patrimônio e restauro pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Trabalhava no Mosteiro dos Jerônimos antes da pandemia, quando veio para Porto estar perto do filho e nora. 

Mântua comenta que a maior parte das visitas guiadas são feitas por portugueses que desconheciam o acervo da Casa-Museu Fernando de Castro. Após criar redes sociais e organizar a divulgação, o volume de visitas começou a aumentar e o local foi tema de reportagens na imprensa. Para ela, “é muito importante criar laços com a comunidade e as redes sociais vêm ajudar muito para isso”.

Ana Anjos Mântua

História é a vida de Mântua. Além de escrever críticas sobre exposições e artigos, Mântua publicou o romance histórico “A americana que queria ser rainha de Portugal”. Após extensa pesquisa inicialmente feita para uma biografia, ela – a conselho da editora – aceitou o desafio e escreveu o romance  empolgante sobre a norte-americana Nevada Hayes, uma das figuras mais comentadas pela imprensa internacional e pela aristocracia europeia da época. Nevada tornou-se mulher do príncipe Dom Afonso, filho de Dom Manuel, último rei de Portugal, que recebeu a notícia do casamento com recusa e indignação em seu exílio na Inglaterra. Com o casamento, assumiu o título de duquesa do Porto, princesa de Bragança. Morreu em 11 de janeiro de 1941, já viúva de ‘seu amor’ D. Afonso e tendo conseguido a herança por direito do Estado português. 

Primeiro romance histórico de Mântua

Mântua, prestes a aposentar-se, está trabalhando em uma biografia (que ainda é segredo!) e apreciando ser avó de um menino com um mês de vida. Entusiasmada com a perspectiva da aposentadoria em breve, Mântua quer viajar mais como explica:

– A vida de quem se dedica a pesquisas ou a museus é muito boa, mas é solitária e reclusa. Estamos dias inteiros à frente de uma tela de computador. 

E a escrita? 

– Com certeza também, e ao abordar história, você está cercada de algo que foi, não do que será nem do que é hoje.

A conversa caminha-se para o final, no café perto do Museu, cujo dono é carioca e jornalista (mundo pequeno, não?). Para terminar, o que ela diria para quem viria morar em Portugal? 

– Na minha opinião, quem se muda para outro país deve tomar esse país como seu e não criar uma comunidade à parte. Aprender o idioma é o início. Depois, visitar museus, bibliotecas, ir ao teatro e conversar. O brasileiro tem a vantagem de entender o português, mas há palavras com outros significados. Então, é conhecer o lugar que o recebeu. 

#história #NevadaHayes #AnaMântua #arte sacra #romances #museus

Lena Miessva

Jornalista & Escritora & Blogger

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Olá, Sou Lena Miessva

Após percorrer várias estradas da vida no Brasil, Lena Miessva inicia um novo caminho em Portugal. Aprendizados nas relações humanas, na comunicação interpessoal e aprimoramento da escrita são seus focos principais nesses tempos de mudanças globais, locais e pessoais.

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