Descubra a história inspiradora do Dr. da Borracha, o artesão acreano que transforma látex da Amazônia em sapatinhos sustentáveis, ecológicos e únicos

Em outubro passado, em minha ida a São Paulo, minha amiga Dora Magalhães andava com um sapatinho diferente. Confortável, secava rápido, uma graça! Apaixonei-me pelo dito cujo e fui até a loja que vende os sapatinhos feito de látex em São Paulo – pois eles são feitos no interior do Acre, na Amazonia!
A proposta desse post infelizmente não é mostrar in loco o belo estado brasileiro e sim partilhar uma história que mostra como uma ideia + determinação + trabalho constante pode fazer a diferença. Afinal, não é qualquer sapatinho. São modelos únicos, feitos com a seiva da seringueira – o látex natural da Amazonia, que em séculos passados gerou tanta riqueza ao país com o ciclo econômico da borracha.
E mais natural, impossível. A produção só acontece quando o tempo está bom, com sol, sem chuva, e respeitando sempre o ciclo de colheita da seiva das seringueiras. Os sapatinhos servem para os dias de sol e para dias chuvosos pois não estragam quando molham pois o látex é impermeável. A prova foi quando os usei nas aulas de hidroginástica em piscina de água do mar em temperatura ambiente.



A produção artesanal destaca-se pela meticulosidade e singularidade. Cada sapatinho é feito a mão com muita criatividade e técnicas tradicionais, refletindo a habilidade do artesão e a atenção aos detalhes. Carregam consigo autenticidade e alegria nas cores. Quem está por trás dos sapatinhos é José Rodrigues de Araújo, 44 anos, conhecido na região como Doutor da Borracha. Esse apelido é uma referência ao seu trabalho como seringueiro desde a infância, quando acompanhava seu pai e seu avô, desbravando as matas da floresta em busca das seringueiras em Assis Brasil, no Acre. Hoje reside em Epitaciolândia, na Área de Relevante Interesse Ecológico Seringal Nova Esperança, uma reserva ecológica com uma área de 2.573,97 hectares (0.02573 km²).
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Ele descobriu como poderia transformar a borracha em artesanato em 2004 depois de frequentar um curso ministrado por professores da Universidade de Brasília (UnB) que estiveram na região. A técnica para fabricação dos sapatos foi criada pelo Prof. Dr. Floriano Pastore, da UnB juntamente com ele, como conta:
– “Quando eles foram embora, usei toda a minha mente e a minha inteligência para imaginar o que faria e confeccionei uma bolsa, mas ainda fiquei imaginando o que poderia fazer a mais”, explica José.

Os sapatos não têm costura, não tem couro, o solado também é de borracha. Até para juntar as partes de cima com a sola dos sapatos, é usada a própria cola orgânica do látex”. Para confeccionar as peças, José produz ‘folhas’ ou ‘mantas de látex’, conhecidas como Folhas Semi Artefato (FSA), utilizando uma técnica criada pelo Laboratório de Tecnologia Química (Lateq) da Universidade de Brasília (UnB), aprendida pelo seringueiro durante o curso.
O primeiro sapato foi feito para o seu filho, que na época tinha três anos de idade. O segundo, mal terminou e vendeu para o seu sobrinho. Em 2007, fez a primeira exposição em Rio Branco, com apoio do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) – uma instituição privada que promove a competitividade e o desenvolvimento sustentável dos empreendimentos de micro e pequenas empresas. “Eu nunca tinha saído da zona rural”, diz. E isso foi só o começo para Assis Brasil ganhar os grandes centros urbanos do Brasil.
Veja o vídeo rapidinho feito para o instagram da Sapatinhos da Seringueira, quando Assis Brasil esteve em São Paulo e foi pauta de uma reportagem para emissora de televisão.
Atualmente, sua produção mensal está estimada em cerca de 500 peças. Conta com a ajuda da família, de três funcionários no ateliê e dois seringueiros que fornecem a borracha para confecção dos produtos. Tem mais de 30 modelos, com cores variadas, que segundo ele, são para atrair a atenção dos clientes. Tem ainda bolsas com design que remete a folhas da seringueira.
Ele destaca, ainda, que a moda nunca ditou o rumo do seu negócio. “Os produtos saem da minha cabeça, não são de época”, enfatiza. Mas sempre busca agregar valor aos seus produtos. E ele vai longe com seus sapatinhos:
– “Sempre tive o sonho de ir a Brasília. Jamais imaginei que além de Brasília pudesse ir ao Rio de Janeiro e em tantas outras cidades do Brasil e muito menos para fora do Brasil. Estar em uma feira em Milão? Isso nunca mesmo! Imagine eu, um seringueiro, criado no meio da floresta, no estrangeiro. Tenho muito orgulho de onde cheguei com o meu trabalho, com o meu artesanato”, emociona-se o artesão.

Cenário Nacional e Mundial do látex
Segundo o jornal, o sucesso do Doutor da Borracha ocorre em um cenário desafiador para o mercado brasileiro de látex. O Brasil exporta cerca de 45 mil toneladas de borracha natural anualmente, movimentando US$73 milhões no último ano, segundo dados do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviço (MDIC).
Entretanto, a exportação do látex brasileiro tem enfrentado uma queda significativa de 21% entre 2023 e 2024, devido a preços de comercialização baixos e custos de produção mais altos em comparação com a borracha asiática.
Outro ponto de destaque é que o trabalho desenvolvido por José é feito na Área de Interesse Relevante Ecológico (Arie) Seringal Nova Esperança. Essa área é uma reserva ecológica que tem como objetivo proteger exemplares raros da biota regional, em especial as espécies Castanheira (Bertoletia excelsa) e Seringueira (Hevea brasiliensis).
De par em par, José mostra como a sustentabilidade pode ser praticada na Amazõnia em produtos únicos e ecológicos. Seus sapatinhos de seringueira são enviados para clientes fiéis ao produto nos Estados Unidos, Portugal, Grécia, China e Suíça, como conta José em reportagem para o jornal acreano O Juruá em Tempo:
“Se eu ficasse desmatando, eu me sentiria inseguro de viver desse jeito. Mas, com o jeito que eu trabalho, eu me sinto firme. O sentimento é muito bom, porque eu consegui levar a história do meu avô e do meu pai para fora do Brasil. Eu me sinto muito feliz em Deus ter me dado esse dom, de artista, de artesão, e conseguir fazer essa mudança na borracha e ser valorizado”, afirma.
