Fazer 50 anos de liberdade é para celebrar todos os dias
“O soldado pediu-me um cigarro. Eu não fumava, nunca fumei. Por segundos, fiquei a pensar como poderia compensar aquele rapaz, ali, em cima daquele carro, a lutar por nós. Estava ali a dar-me uma coisa boa e eu sem nada para lhe dar. Sem pensar, tirei um cravo do ramo que levava e ofereci-lho. Nunca me passou pela cabeça que por causa disso o 25 de Abril viesse a ser conhecido mundialmente como a Revolução dos Cravos.” Palavras de Celeste Caeiro, hoje uma senhora de 90 anos ao recordar o gesto de entregar os cravos a um soldado e que se tornou símbolo da liberdade de Portugal.
“Havia sempre nos livros da escola a referência à Revolução dos Cravos. A cada ano, mal recebia os manuais, ia de imediato à procura dessas páginas. Sabia que as professoras, nem que fosse uma vez por ano, haveriam de falar no assunto e que eu mais uma vez ficaria em silêncio. Nunca disse na escola que foi a minha avó que deu o nome à revolução. Apesar de todo o orgulho que tenho. Acredito mesmo que aquele gesto foi obra do destino. A minha avó Celeste é filha de uma espanhola de Badajoz e de pai desconhecido. Com dois irmãos, mais velhos, cresceu na Casa Pia. À minha bisavó custou-lhe até muito deixar ali os filhos, que visitava regularmente. Nunca os abandonou”. Palavras de Carolina, neta de Celeste, sobre a sua avó e o gesto singular.
Passado um mês e uma semana do 25 de Abril, quero partilhar a minha admiração por esse país que estou a aprender a conhecer. Portugal tem celebrado a sua liberdade não apenas no feriado nacional. Desde o início do ano, tenho lido os jornais, revistas, sites e tudo o que encontro sobre a Revolução. Aprendizado tardio, eu sei. Mas antes aprender tarde que jamais aprender.
A revista Visão História foi a primeira a ser lida para entender o contexto histórico. A linha do tempo inicia em 1968 com a subida ao poder de Marcelo Caetano e chega a abril de 1974. Os depoimentos mostram a fundação do Partido Socialista Português ainda na Alemanha, a barbárie da PIDE como contado por José Pedro Soares, preso em 1971 com 21 anos e que viveu 31 dias e noites de interrogatórios, agressões e tortura. “Ainda hoje tenho marcas no meu corpo. Resisti e não denunciei nenhum dos meus camaradas”, disse Soares.
A mesma Visão, em sua edição semanal, – assim como todos os jornais e revistas – publicou a edição comemorativa em 25 de abril. A revista convidou alguns dos mais significativos ilustradores portugueses para criarem cartazes que “em 2024 pudessem ser um grito de alerta, uma manifestação de felicidade, um apelo à luta ou uma chamada à ação” e durante 50 semanas, os cartazes ocupam o espaço nobre da última página da revista. E ainda trouxe o depoimento de Luís Almeida Martins, então um dos subchefes da redação de A Capital, contando os bastidores da redação naquelas horas e dias inesquecíveis também para quem fazia as reportagens.
Memória de páginas amareladas
O Jornal de Notícias – conhecido como JN – além de publicar um fac-símile da edição de 25 de abril de 1974, deu voz a quatro mulheres de diferentes idades e cidades para contarem como aquele dia impactou as suas vidas. Luisa d´Espiney tinha 16 anos quando foi detida e presa. E recorda: “quando fui para o Liceu Filipa de Lencastre, tive de assinar um documento em como me comprometia a usar saias abaixo do joelho”, disse hoje, com 66 anos.
A maioria das publicações traz comparativos sobre Portugal em 1974 e hoje, com dados sobre demografia, segurança social, saúde, economia, negócios, cultura e sociedade. Jornais e revistas para serem guardados, a despeito da vigente tecnologia.
O jornal Expresso trouxe as cores, a criatividade de sempre e um especial destacável. Ali estão matérias apetitosas como as histórias de amor da guerra colonial. E mais – levou um dos militares de Salgueiro Maia a regressar ao Largo do Carmo, passados 50 anos. Abro espaço para o jornal contar a história:
“Na Escola Prática de Cavalaria, em Santarém, a Revolução começou mais cedo, há 50 anos e um mês. Em março de 1974, o capitão Salgueiro Maia já doutrinara os voluntários que o acompanhariam no derrube do regime. Amílcar Coelho tinha 20 anos e era um dos cerca de 120 cadetes, que se preparavam para partir rumo à guerra em África, mas antes mudaram a História de Portugal”.
É Amílcar quem conta: “Na subida para o Chiado, os operacionais (soldados) são recebidos pela população em festa. “Foi a primeira vez que ouvi ‘o povo unido jamais será vencido’, as pessoas gritavam, cantavam, queriam tocar-nos, era algo quase religioso”. Amílcar é professor de Filosofia com dezenas de livros publicados. A sua foto no dia foi tirada por um fotógrafo suíço que, como prometeu, lhe mandou depois.
O jornal Público, além de cobertura exemplar com reflexões de historiadores e de personagens que viveram a ditadura e a liberdade, tem trazido todos os dias poemas de autores portugueses – quer ousadia maior que um jornal abrir uma página todo o dia para publicar um poema?
A semanal revista Sábado publicou uma edição especial com 74 páginas como referência ao ano que marcou a virada portuguesa. Na capa, Salgueiro Maia e a chamada para a matéria “A revolução contada pelos heróis”, e a reprodução de entrevista dada por ele à Universidade de Coimbra em março de 1991, um ano antes de morrer de cancro. Entre as respostas, ele conta como orientou os soldados jovens subalternos:
“Meti-os dentro de uma sala… Nas instruções anteriores tentava prepará-los, mas uma coisa é isso, outra é assumir frontalmente que vamos acabar com o regime. Comecei a pensar: o que é que eu vou dizer a estes fulanos? Olhe, e vou numa situação de gozo, talvez seja a mais receptiva. Então, disse-lhes: “Meus senhores, como já sabem, há várias modalidades de o Estado se organizar: há os estados socialistas, há os estados ditos comunistas, os estados capitalistas e há o estado a que chegámos. De maneira que quem quiser vir comigo vamos para Lisboa e vamos acabar com isto. Quem for voluntário sai e forma lá fora. Quem não quiser sair fica aqui. Toda a gente foi formar lá fora. Não ficou ninguém na sala”.
O Diário de Notícias, centenário jornal português, trouxe reportagens e fotos daquele tempo, além do resgate da Celeste Caeiro e sua neta, que abrem esse post.
O quinzenal Jornal de Letras, Artes e Ideias fez uma edição primorosa sobre a “revolução que nos deu a liberdade”, com uma capa estupenda. Durante todo o ano, o JL tem trazido artigos novos e antigos sobretudo de escritores, como diz o diretor José Carlos de Vasconcelos, cujo texto trago por resumir o que tem sido vivido:
“Comemorar os 50 anos de 25 de abril, lembrando, assinalando, sublinhando o que foi e representou, é um imperativo nacional. Que melhor ou menos bem, com ou sem a qualidade e amplitude desejáveis, mas decerto com as possíveis, está a ser cumprido. Um pouco por todo o país, por iniciativa da comissão nacional das comemorações, de autarquias, de inúmeras instituições, organizações, grupos – e de formas muito diversificadas. Imperativo nacional, em qualquer circunstância, e ainda mais quando há quem queira reconstituir, sob novas vestes, velhas e sinistras ideias (enquanto não as consegue passar a práticas…) de um criminoso passado tirânico.
A magnitude da celebração em um momento de mudanças no cenário político português, com crescimento de forças de extrema-direita, é bem detalhada pela escritora Lídia Jorge, na coluna Opinião da revista Sábado:
“A celebração dos 50 anos da Revolução dos Cravos que ocorre no presente contexto, faz-nos reviver essa data como um acontecimento de primeira grandeza. Na minha vida, nunca assisti a uma comemoração que implicasse tanta gente, em tantos lugares e de tantas formas. Os jornais nacionais e estrangeiros, os livros, os palcos, as ruas, as escolas, as universidades, a arte, a literatura, a televisão e o cinema estão implicados nessa data. Por que será assim? Porque o 25 de Abril foi uma revolução generosa, aquela que permitiu ao mesmo tempo a libertação de vários povos, não só do povo português, mas também, e sobretudo, nos outros, aqueles que passaram a ser autónomos e a fazerem-se reconhecer como donos dos seus próprios países…”
Vale dizer que um ano e meio depois da Revolução de 25 de Abril de 1974, o país estava a ferro e fogo, segundo texto do site SIC Notícias:
“Depois do Verão Quente de 75, Portugal chegava a novembro à beira da guerra civil. Militares ligados à extrema esquerda tomam pontos estratégicos da capital. Um dispositivo militar, com base no Regimento de Comandos da Amadora, opõe-se. É decretado o estado de sítio em Lisboa.
O 25 de Novembro de 1975 em Portugal foi resultado de tensões políticas e ideológicas que surgiram após o 25 de Abril de 1974. A Revolução dos Cravos depôs o regime autoritário do Estado Novo, mas as forças políticas e sociais em Portugal estavam divididas quanto ao rumo a ser seguido.
Entre as principais causas que levaram ao 25 de Novembro destacam-se: divisões ideológicas com forças à esquerda, representadas principalmente pelos militares de orientação comunista, e forças mais moderadas e de centro-direita. Essas divergências levaram a confrontos sobre o curso político a ser adotado. Além disso, a rápida implementação de medidas como nacionalizações de setores estratégicos da economia e as reformas sociais provocou tensões entre os diferentes grupos políticos.
As forças armadas inicialmente unidas na Revolução dos Cravos, começaram a dividir-se em fações com visões diferentes sobre o papel militar na governação. Temia-se uma radicalização excessiva do país em direção ao comunismo, o que levou a um confronto entre os setores mais moderados e os mais radicais na sociedade portuguesa.
A data marca uma tentativa de reconciliação e estabilização política, com uma intervenção militar liderada pelo general Ramalho Eanes, que buscava restaurar a ordem e evitar uma possível deriva para a esquerda radical. Foi o fim do PREC – Processo Revolucionário em Curso – e o início da consolidação da democracia em Portugal”.
Então no próximo ano deverá haver mais debates e reflexões sobre os rumos políticos e sociais do país tomados após 25 de Novembro de 1975.
E no Brasil, o que fizemos?
Uma das minhas reflexões é a partir do fato que – ao contrário de Portugal – tivemos uma ‘abertura’ negociada pelos militares. Foi o general Ernesto Geisel a criar condições internas para retorno dos exilados, entre outras medidas. Que dizer da chegada do exilado Fernando Gabeira e o verão carioca com sua tanguinha de croché?
Em 31 de março passado, o golpe de Estado com a deposição do presidente João Goulart completou 60 anos. Iniciava naquele fatídico 1964 a ditadura terminada com as eleições indirectas de 1985 vencidas por Tancredo Neves – que veio a falecer após doloroso calvário pela sua doença tanto para sua família quanto para o país. José Sarney assume a Presidência da República em 15 de março de 1985 com mandato até 15 de março de 1990, sucedido por Fernando Collor que venceu Luís Inácio Lula da Silva.
O mesmo Lula que, em seu terceiro mandato, orientou seus ministros em 2024 a não realizarem actos alusivos ao marco inicial da ditadura militar, afirmando que o golpe era algo do “passado” e que não ficaria “remoendo” o assunto “sempre”. Ainda bem que vários ministros não cumpriram a orientação, que na minha opinião foi infeliz.
Portugal celebra a liberdade reflectindo sobre o passado, fazendo a lição de casa para se preparar para o futuro. Há que se cuidar com carinho da democracia. O sentido de liberdade constrói-se todos os dias, a toda a hora e essa é a sábia lição que temos neste ano da graça de 2024.
Espero de coração que em 2025 o Brasil celebre os seus 40 anos de democracia, iniciada indirectamente e depois nas urnas. E que sejam feitas reflexões sobre o passado, incluindo os 21 anos de ditadura e as quatro últimas décadas com liberdade.
Fica a sugestão e o desejo de uma brasileira que, distante do seu país, exalta este povo tenaz com cravos vermelhos, e recorda os versos originais da bela música Tanto Mar, de Chico Buarque. Para quem não a conhece, a letra traça o paralelismo entre o período democrático que se tinha iniciado em Portugal e o período ditatorial que se vivia no Brasil. É por esse motivo que sua letra é censurada. Já a versão de 1978, mais conhecida, retrata a crise que surgiu em Portugal aquando do 25 de Novembro de 1975. Vamos à letra? Se não a conheces, pesquises na internet pois é uma bela canção!
“Sei que estás em festa, pá | Fico contente | E enquanto estou ausente | Guarda um cravo pra mim | Eu queria estar na festa, pá | Com a tua gente | E colher pessoalmente Uma flor do teu jardim | Sei que há léguas a nos separar | Tanto mar, tanto mar | Sei também que é preciso, pá | Navegar, navegar | Lá faz primavera, pá | Cá estou doente | Manda urgentemente | Algum cheirinho de alecrim!”
Obs.: As imagens foram tiradas das publicações, a quem devo o crédito e terno agradecimento.